O que é educar? Será somente uma transmissão de conhecimentos existentes entre um doador e um recebedor, um portador e um desconhecedor, um sábio e um ignorante? Assinalar afirmativamente para essas questões conceitua o ato de educar como uma relação de hierarquia, em que os olhos do educador e do educando não conseguem se entrecruzar, tampouco vislumbrar o mesmo plano. A educação, nesse sentido, não passa de um mero exercício de exposição, memorização e repetição. Sem questionamento, sem crítica, sem participação, sem construção, sem autonomia.

Essa é, contudo, a realidade que encontramos na maior parte dos âmbitos escolares. Entre os muros da escola, a inexistência da autonomia é a regra, enquanto a liberdade – instrumento de reconhecimento, de ação e transformação – é a exceção. Essa é a realidade, em larga medida, da educação no Brasil. Entretanto, é um engano pensar que os problemas educacionais se restringem ao solo brasileiro. Em filmes como “Entre os muros da escola” (Entre les murs), vencedor do Palma de Ouro no festival de Cannes em 2008 e “Escritores da Liberdade” (Freedom Writers), percebemos como os problemas em relação ao processo educacional existem em países “desenvolvidos”, como a França e os Estados Unidos.

Ambos os filmes são adaptações de livros escritos por professores sobre as suas experiências pedagógicas. Desse modo, as realidades apresentadas não são mera ficção. Elas são as apresentações cinematográficas do cotidiano escolar, vivido por professores e alunos. Cotidianos, todavia, não teatralizados, nem de escolas construídas para as classes abastadas. São cotidianos de escolas periféricas, em que as diferenças se fundem, se misturam, se cruzam; em que visões de mundo contrastam, culturas se esbarram e experiências se chocam. Não muito diferente das realidades encontradas nas escolas públicas brasileiras.

Diante de cenários como esses, como o educador deve se portar? Será possível imbuir os sujeitos de autonomia, de liberdade e capacidade de ação sobre o mundo? Paulo Freire, pensando sobre essas e outras questões envolvendo a educação, responde que sim: é possível construir e aplicar uma pedagogia da autonomia. Para que isso ocorra, é necessário considerar como “conditio sine qua non” desse projeto, que o ato de educar não pode ser entendido como uma relação simplesmente hierárquica, uma disposição de saberes e poderes. Isto é, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 22).

Esse é o ponto sob o qual a autonomia dos educandos se estrutura e cresce. Sem a compreensão da educação como um processo dialógico, que envolve não só o educador – transmitindo ordens, instruções, informações, conhecimentos –, mas também o educando, o ato de educar se empobrece e perde as condições para que a produção do conhecimento aconteça, haja vista a desconsideração do educando como um sujeito ativo na relação ensino-aprendizagem. Como bem coloca Paulo Freire, para ensinar, é preciso, antes, aprender. A educação é um processo social, no qual todos nós estamos inseridos, logo, não há como se saber de tudo, não há o que não pode ainda ser aprendido. Ao se colocar numa posição vertical em relação ao educando, o educador deixa de aprender e perde a oportunidade de criar condições para que o conhecimento floresça, já que “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1996, p. 23).

A verticalidade educacional, primando pela hierarquia e pela disciplina, mostrou-se o grande problema de François (François Bégaudeau) em “Entre os muros da escola”. Apesar de haver esforço e envolvimento com os seus alunos, ele muitas vezes ultrapassava o limite da autoridade e flertava, quando não dançava, com o autoritarismo. Impor a disciplina da escola, o respeito ao professor, em momentos em que sua autoridade era questionada e/ou desrespeitada, o encaminhava para o autoritarismo, caminho adotado de forma sistemática pela escola. Faltava diálogo entre a liberdade e a autoridade, entre o educador e os educandos, em um plano horizontal, em que todos pudessem se olhar sem que se sentissem desconfortáveis em suas condições individuais. Paulo Freire adverte para o perigo de se cair no autoritarismo, tantas vezes mascarado de autoridade, condição em que há o desaparecimento da liberdade e da autoridade, elementos fundamentais para uma boa prática pedagógica. Ao se direcionar para o autoritarismo e transformar-se em tirano, François perdia a oportunidade de reinventar as condições para que a autonomia dos educandos acontecesse e eles pudessem se perceber como sujeitos do processo educacional do qual fazem parte.

No entanto, o problema não estava exclusivamente no professor François, e sim, na maneira como a escola enxergava o processo pedagógico, preocupando-se muito mais em vigiar e punir, para criar um ambiente disciplinar – lembrando Foucault – do que em problematizar o cotidiano escolar, o comportamento dos alunos, as suas realidades. Não havia diálogo com o que estava para além dos muros da escola, lugar onde se encontram e se reproduzem as experiências dos educandos. Dessa maneira, tornava-se impossível entender os alunos como sujeitos, uma vez que as suas experiências prévias e externas eram desconsideradas por se situarem fora da escola. A escola estava, portanto, afastada da realidade e, por consequência, dos alunos. Ao se criar um ambiente escolar desconectado do concreto, como constata Freire (1996, p. 27), perde-se a capacidade de os educandos conhecerem e intervirem no mundo. Ou seja, na medida em que o ato de ensinar é desvinculado das experiências dos educandos, há um afastamento entre a teoria e a prática, pois aquilo que é transmitido não consegue se transformar em um conhecimento próprio para ler o mundo, interpretá-lo e transformá-lo, haja vista que “A leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1989, p. 9).

A falta de compreensão do ato de ensinar como um processo dialógico, de construção e reconstrução permanente, de fala e escuta, de observação e absorção, fez com que François, ainda que preocupado sinceramente em ajudar seus alunos, se desconectasse deles progressivamente. Faltava-lhe um entendimento maior das individualidades presentes na sala de aula (com brancos, africanos, asiáticos, cristãos, islâmicos, etc.), para que assim pudesse despertar a autonomia dos educandos, possibilitando uma experiência pedagógica mais profunda e mais transformadora. Diante de sentimentos, como a impotência, a baixa autoestima e a exclusão, presentes em seus alunos, François deveria procurar problematizar os fatores que levaram à propagação desses sentimentos paralisantes, a fim de que os educandos pudessem perceber as suas experiências como parte do processo escolar, como elementos histórico-sociais e, portanto, passíveis de mudança, como o “medo que, ao ser ‘educado’, vai gerando a coragem” (FREIRE, 1996, p. 45).

Em sentido oposto, aparece a professora Erin Gruwell (Hilary Swank), do filme “Escritores da Liberdade”. Enfrentando dificuldades semelhantes às de François, como a pluralidade étnica e cultural dos alunos, a exclusão e o deslocamento social, a baixa autoestima e o sentimento de impotência e incompreensão ante a realidade, ela teve a percepção de que era precisa autonomizar os seus alunos, torná-los sujeitos, escritores da própria história. É curioso o fato de ambos, a partir do livro “O diário de Anne Frank”, terem feito atividades semelhantes com suas turmas – a construção de um autorretrato – e obterem resultados bastante diferentes. Isso evidencia a contradição entre a preocupação sincera de François com a educação e sua incapacidade de enxergar o problema além de um olhar normatizador.

O que faltou ao professor francês, existiu com muita força na professora Gruwell. Ela procurou criar as condições para que o conhecimento fosse produzido por meio das experiências dos seus alunos, para que eles se enxergassem como sujeitos ativos, capazes de olhar o mundo como um objeto cognoscível e transformável. Capazes de olhar para si próprios e suas realidades como produtos históricos que podem ser modificados, e não, como meras fatalidades do destino ou algo similar. Para tornar isso possível, ela olhou para dentro de si, buscando nela as raízes para as dificuldades dos alunos. Ou seja, ela se colocou como parte do problema, como alguém que também precisa se entender, buscar soluções, aprender. A professora Gruwell não procurou transferir conhecimento. Ela procurou criar conhecimento, aprender na medida em que ensinava. Por meio disso, ela deu o exemplo, algo imprescindível para que o processo de ensino-aprendizagem funcione, como destaca Paulo Freire.

Os educandos, assim, se sentiram despertados, espantados, como gostava de falar Rubem Alves. Eles sentiram-se curiosos pelo mundo (interior e exterior), explorando-o e buscando compreendê-lo, transformá-lo. Tornaram-se sujeitos críticos, epistemologicamente curiosos e corajosos o bastante para não se sentirem paralisados pelo medo, já que passaram a confiar nas suas capacidades e potencialidades. É preciso reiterar que isso só foi possível em função do posicionamento da professora Gruwell diante do problema, que ao se colocar como parte dele, pôde ouvir seus alunos, enxergá-los como seres com individualidades e dificuldades próprias. O ato de ensinar, dessa forma, não foi entendido como uma transferência de conhecimento, mas como uma relação entre dois polos em comunicação permanente. Em outras palavras, houve a compreensão de que educar é escutar, porque, assim como para ensinar é preciso aprender, para falar é necessário saber escutar.

“Que me seja perdoada a reiteração, mas é preciso enfatizar, mais uma vez: ensinar não é transferir a inteligência do objeto ao educando, mas instigá-lo no sentido de que, como sujeito cognoscente, se torne capaz de interligir e comunicar o interligado. É neste sentido que se impõe a mim escutar o educando em suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. E ao escutá-lo, aprendo a falar com ele (FREIRE, 1996, p. 119).”

Hegel diz que nada pode ser feito sem paixão. Na pedagogia freiriana, nada se aprende sem curiosidade. Entretanto, para que a curiosidade seja despertada, é preciso olhar e enxergar, ver e reparar, para que o outro, o educando, sinta-se sujeito, gente humana, que ao olhar o mundo, enxergar o mundo de volta, como o reflexo de suas ações e não como simples fatalidade. Sendo assim, é o olhar que determina se entre a escola e a sociedade, entre educandos e educadores, pais e comunidade escolar, serão levantados muros ou construídas pontes, afinal, se é por meio da autonomia que os indivíduos se fazem sujeitos, é no seio da liberdade, com escolas que são asas e não gaiolas, que a educação – com educandos e educadores – deve levantar voo.

 

Referências Bibliográficas:

ALVES, Rubem. Gaiolas e Asas. Folha de S. Paulo, 2001.

D’HONDT, Jacques. Hegel. Lisboa: Edições 70, 1999. [Cap. 4: Extracto, V – História].

ENTRE os Muros da Escola. Direção: Laurent Cantet. França: Imovision, 2008, 128 min.

ESCRITORES da Liberdade. Direção: Richard LaGravenese. EUA: Paramount Pictures, 2007, 122 min.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão/Michel Foucault; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1999.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora, 1989.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura).