Manifestações pelas Diretas Já (1984)

Tenho relutado em escrever qualquer coisa referente ao período eleitoral; afinal, nada do que eu tenha a dizer é novidade. Estamos cansados de saber os riscos que corremos, ainda mais tendo em conta a fragilidade do regime democrático em vigor desde a redemocratização, a precariedade das nossas instituições políticas fortemente partidarizadas e os discursos autoritários circundantes em setores significativos da sociedade brasileira, que fazem com que o temor da repressão violenta exista não apenas em relação aos instrumentos de controle estatais como as polícias coordenadas por um novo regime ditatorial mas também em referência a muitos de nossos concidadãos que se sentem imbuídos da missão de depurar moralmente a nação dos indesejáveis que impedem a ordem e o progresso: os índios, os pobres, os negros, as mulheres, os gays, as lésbicas, as travestis, os deficientes etc. Só restaria o homem branco heterossexual e (supostamente) cristão com um fuzil na mão a colocar os diferentes nos seus lugares.

Toda a estupidez coletiva vista nesse pleito e que contamina os tomadores de decisão e os desprovidos de poder, é resultante de uma série de fatores, dentre eles a erosão da representação política no país incapaz de dar respostas aos problemas da população, a recessão econômica que deixou milhões de pessoas jogadas a própria sorte, o clima macarthista fomentado pelos meios de comunicação, o judiciário e a direita reorganizada após 2013; e um certo saudosismo da ditadura de 64-85 que se contrapõe ao clima de anarquia reinante. Ou seja, o bolsonarismo não é um fenômeno tão surpreendente se levarmos em conta que ele reúne ressentimentos e frustrações que sabíamos ser reais já há algum tempo. O triunfo da versão tupiniquim do fascismo simboliza a ruptura com as regras do jogo pela via do voto e a legitimação institucional do genocídio de grupos importantes. É importante derrota-lo nesse fim de semana, mesmo sabendo que as chances disso ocorrer são escassas. Entretanto mais importante ainda é compreender que trata-se do primeiro round de um confronto que promete se estender por muito tempo entre as classes sociais.

A vitória do campo progressista não atenua a ferida que já se abriu em nosso país em torno dos destinos de 208 milhões de pessoas. A vitória do PT não abriria espaço para um novo ciclo de consensos. Na verdade acirraria os ânimos e dada a militarização do regime democrático no país com o colapso da administração civil, incorreria em um risco real de intervenção dos tanques. Isso não quer dizer que deixaria de ser importante, afinal abriria espaço para uma mobilização popular em defesa da democracia. A centro-esquerda deixou de gozar da legitimidade que tinha junto ao sistema pois as elites em suas numerosas frações não estão dispostas a fazer concessões: declararam guerra a população com um programa econômico abertamente pró-mercado – que o candidato do fascismo escondeu como pôde durante todo o processo – e entenderam que aparentemente os custos de reprimir são menores que os custos de tolerar*, o que faz com que qualquer oposição a visão de mundo ultraliberal casada com Estado policial máximo seja vigorosamente combatida com apoio da opinião pública. Não é à toa que a escalada “verde-amarela” vem acompanhado de um cerceamento do espaço do debate nas escolas e universidades, eliminando o pensamento crítico e a reflexão conjunta (medida autoritária com respaldo nas alas mais retrógradas da sociedade civil). Uma vitória ou derrota simbolizará – independente de como se der – o inicio de um ciclo de lutas sociais que será doloroso, talvez com mais mortes e perseguições do que em qualquer outro momento da história do país: um país que nunca fez justiça aos dominados e foi formado sob a subordinação de 98% do seu povo para o atendimento da sanha irrestrita de lucros de 2% ou 1% de abastados que entendem que a nação é sua por direito e de mais ninguém.

Caso fracassemos nas eleições, teremos sob nossas cabeças lideranças que elogiam a tortura, generais com a mentalidade arcaica da Escola Superior de Guerra e oportunistas de plantão que sabem qual o seu lugar nas trincheiras. Mas a batalha nunca se resumiu a um voto, ela diz respeito a um conjunto de questões mal resolvidas das quais será preciso se aproximar. Afinal, tem trabalhadores do lado de lá embarcando na histeria coletiva contra os seus próprios interesses. São dilemas que a conciliação de classes e a falta de autocrítica e interpretação próprias do ex-partido governista não deu conta de responder e aos quais uma nova imaginação teórica terá de impulsionar respostas. Com Haddad perdedor, a resistência vai ter de ser materializada; com Haddad vencedor, ainda mais. O bolsonarismo, essencialmente totalitário, nos elegeu como inimigos. Nós todos que não aceitamos as desigualdades sociais dilacerantes, que produzimos conhecimento ou que valorizamos ele, que pensamos, que contestamos, que temos formas de vida distintas da normalidade cinza e sem graça, que não acreditamos no ódio como parte integrante do debate. A nós obviamente não entregarão o poder político de bandeja. Não podem deixar o país ao qual dizem venerar (pelo menos esteticamente com seu figurino CBF) nas mãos de abutres “vermelhos” que querem mexer, ainda que na prática minimamente, nas hierarquias que escandalizam a qualquer observador sensato externo. Para eles é impensável uma sociedade na qual sejam tratados da mesma forma que os demais, por isso o petismo e o “esquerdismo” de modo geral precisam ser contidos, com o apoio de estruturas fortes da imprensa, de setores da inteligência internacional de olho nas riquezas do país e do aparato de repressão que não vê a hora de ficar alheio a controles legais. Que a conversa olho no olho com os indecisos desses dias nos sirva de lição para reconstruir os laços esgarçados, já que é dessa reconstituição que depende a resolução de um problema muito mais profundo do que a participação meramente eleitoral. Mas que sobretudo não caiamos na ingenuidade de achar que um jogo determinado pela direita com o golpe parlamentar, a prisão de Lula e a instituição de um panorama de aparente normalidade institucional será desfeito nas urnas.

*Noção emprestada do livro Poliarquia: Participação e Oposição, de Robert Dahl.