Aprendemos que a diferença do ser humano para os demais seres é a sua capacidade de raciocínio que decorre, obviamente, da titularidade que possui em relação à razão. Essa linha de pensamento é consequência da escala hierárquica e moral que estabelecemos em relação aos chamados “animais” e, portanto, da ideia de que a espécie a qual pertencemos deve ter o pleno domínio da natureza e a prerrogativa de usufruir dos recursos que essa dispõe em razão da superioridade que carregamos (alguns baseiam tal usufruto na ideia de que nós, assim como os animais selvagens, estamos inseridos em uma cadeia alimentar). Esse predomínio justificado filosoficamente ou, por assim dizer, “despotismo esclarecido” de homens e mulheres sobre a fauna e a flora tem inclusive um nome, muito utilizado pelos militantes de causas vegetarianas e veganas: especismo.

Dessa forma, a racionalidade humana não só autorizaria um vasto uso da vida existente para obtenção de benefícios, a exemplo dos testes experimentais para indústria farmacêutica, como seria o elemento-chave para coordenação da própria existência dos demais seres vivos (quantas árvores devem ser cortadas, quantos cavalos devem ser explorados para transporte e corridas, quantas galinhas devem ser abatidas etc.) dentro da lógica de uma economia capitalista. Aqui trato de esboçar um determinado quadro e não tomar partido da causa vegana, vegetariana. Como alguém que se alimenta diariamente da carne e leite de outros animais, utiliza roupas que provavelmente foram feitas com lã e utiliza remédios testados em ratos de laboratório, considero inevitável que animais e plantas tenham de morrer para que o progresso humano seja efetivado. A menos que a tecnologia se desenvolva suficientemente para termos protótipos de animais e/ou plantas. Uma situação oposta só mostraria o quão cruel é esse jogo de soma-zero. Meu ponto central é que talvez não seja a razão que nos diferencie dos outros animais.

Para Karl Marx, como bem destaca Hannah Arendt em “A Condição Humana”, é o labor, capacidade laboral ou trabalho quem nos faz distintos na natureza. Um leão, uma gaivota, um peixe ou um macaco pautam sua existência na pura e simples sobrevivência. Todo esforço que é empreendido por esses decorre naturalmente de um determinado ciclo vital que dificilmente se altera, a não ser que hajam externalidades causadas pela – ora, ora – ação humana. Mesmo determinadas médias de vida em algumas espécies raramente são ultrapassadas, o que implica dizer que a vida de um animal não-humano é um figurino fatalmente desenhado pelos céus. O homem, por sua vez, empreende o seu trabalho (físico ou intelectual) como algo externo a sua evolução corporal, o que implica dizer que seu esforço nesse sentido pode ter outros fins que não o de sobreviver, como o de acúmulo. Além disso, a trajetória humana é marcada por imprevisibilidade.

A própria Arendt trata de contestar essa tese marxiana do animal laborans em seu livro. Não constituiriam as espécies no dia-a-dia dos seus habitats formas “exóticas” de trabalho como a caça ao alimento, a reprodução para a perpetuação da espécie (uma “laboralidade” acoplada às funções corporais) e a construção de abrigos como as abelhas e suas colmeias? Provavelmente sim. Por outro lado, há quem suponha que a existência de uma individualidade que pressupõe a cultura do espírito (a introspecção, a filosofia, a reflexão) seria o fator diferenciador dos homens em relação aos outros animais. Nós teríamos personalidade; vacas, bois, formigas ou joaninhas não. Essa noção equivocada ignora que as ideias de “personalidade” ou “indivíduo” foram historicamente construídas e concernem ao período pós-renascentista e pós-reforma Protestante na Europa, que teve larga influência – via colonização – com os processos de secularização no continente americano e nas demais colônias da Ásia ou da África. Nos primórdios, subsistia o apagamento do “eu” e noções mais coletivizadas de pensamento. Logo, “indivíduo” é uma noção moderna. E sabemos que o pensamento em si não justifica oposição com outros seres, já que é possível detectar formas de raciocínio complexo em alguns animais, bem como a existência de pulsões sexuais, emoções e noções fortes de comunidade e família, assim como nos seres humanos.

Desmonta-se, por fim, a ideia de que possuímos inteligência e os animais não, já que o constructo das noções citadas anteriormente pressupõe algum grau de inteligência que não pode ser medida a partir dos sofisticados parâmetros de que dispomos. Sendo assim, minha tese é de que na verdade o que nos diferencia dos demais animais é a maldade. Nenhuma outra espécie foi capaz, vejam só, de matar tanto em tão pouco tempo (os semelhantes), de produzir tantas ditaduras e genocídios, de provocar tantas destruições, saques, torturas e envenenamentos. Tudo isso com fins espúrios: sejam conquistas territoriais, por poder político ou econômico; seja por motivações individuais, descontrole, ódio, raiva, ânsia, prazer e discriminação. A vida, como sempre, e as dores alheias são pouco levadas em conta. Todo dia assistimos há assassinatos e estupros, escravidão e exploração, declarações de ódio e ausência de cooperação, acidentes motivados e hostilidades, apartheids e humilhações. Sob aplauso de muitos. Mas como? Perguntamo-nos. Que outro animal se não o homem produz tão belas atrocidades?

Talvez Rousseau estivesse certo, talvez Rousseau estivesse errado. O “homem” nasce bom e a sociedade o corrompe? O problema é o modo como a civilização foi forjada? Ou o “homem” nasce mau e a sociedade apenas trata de ser o espaço para o exercício de suas inclinações? Ou isso varia de pessoa para pessoa, de sujeito para sujeito? Tendo ainda a concordar com a primeira assertiva, quero ainda ter fé na humanidade. Fé de que as dores e mais dores causadas são frutos de espaços históricos em que sobra rancor e falta empatia. De um arranjo civilizacional mercantil errôneo. Quem sabe, um dia, então, não melhoremos e sejamos tão bons como os outros animais.

Recomendações Cinematográficas

Título: A Festa de Despedida
Direção: Sharon Maymon e Tal Granit
Gênero: Drama/Comédia
Nacionalidade: Alemanha/Israel
Duração: 95 minutos
Ano: 2014

Idosos moradores de um asilo em Jerusalém inventam uma máquina de eutanásia para ajudar os amigos em condições críticas. A criação é um sucesso e a fama do objeto logo se espalha, atraindo inúmeros interessados em utilizá-lo.

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Título: Não sou Eu, Eu Juro
Direção: Phillippe Falardeau
Gênero: Comédia/Drama
Nacionalidade: Canadá
Duração: 110 minutos
Ano: 2008

O ano de 1968 marca uma virada na vida do menino Léon Doré, dez anos. Sua falsa tentativa de suicídio, por enforcamento, fracassa por um fio. Pouco depois, sua mãe neurastênica, que se sente sufocada pelo marido, vai morar na Grécia, deixando seus dois filhos com o pai. Enquanto o irmão mais velho cultiva um rancor surdo, Léon pilha e faz uma bagunça danada na casa dos vizinhos que viajaram de férias, finge ter um problema na vista para justificar as péssimas notas no colégio, arma tramoias, manipula, faz seu pai e todos de bobos. Menos Léa, a jovem vizinha que percebe tudo e que, tendo ela própria contas a acertar com a vida, irá ajudar Léon a roubar o dinheiro para comprar uma passagem de avião para a Grécia.

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Título: A Vingança de Alexandra
Direção: Rolf de Heer
Gênero: Drama/Mistério/Suspense
Nacionalidade: Austrália
Duração: 99 minutos
Ano: 2003

Em uma tarde comum, um pai de família acende um cigarro e sua filha pede para ele apagá-lo. Ele apaga. Ele parece ser um bom pai, suas filhas parecem felizes, sua esposa está preparando uma festa de aniversário surpresa para ele. No entanto, quando ele chega em casa, depois do trabalho, a casa está vazia. Por quê?

Indico também os incríveis (verdadeiras obras-primas) “A Eternidade e um Dia” do diretor grego Theodoros Angelopoulos (GRE, 1998), “Segredos e Mentiras” do diretor britânico Mike Leigh (ING/FRA, 1996) e “Sexo, Mentiras e Videotape” do diretor norte-americano Steven Soderbergh (EUA, 1989), todos vencedores da Palma de Ouro em Cannes nos seus respectivos anos de estreia. 

Recomendação de Série

Título: The Marvelous Mrs Maisel
Direção: Amy Sherman-Palladino
Gênero: Comédia Dramática
Nacionalidade: EUA
Duração: 1ª temporada – 8 episódios entre 50 e 60 minutos (2ª temporada já no ar)
Ano: 2017

Miriam Midge Maisel gostaria de levar uma vida comum em Manhattan, mas seu talento como comediante stand-up transforma sua rotina de dona de casa.

Recomendação de Leituras

Para o fim de ano, dois clássicos da escritora britânica Virginia Woolf.

 

 

 

 

 

 

 

Mrs. Dalloway de Virginia Woolf

Um Teto Todo Seu de Virginia Woolf

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Indico também o livro “Como as Democracias Morrem” dos cientistas políticos norte-americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt que tem como problema central investigar as causas que tem levado a corrosão da democracia liberal não só nos EUA mas em todo o mundo, com a ascensão de figuras populistas que por meio de um discurso violento – e uma série de outras características autoritárias – angariam votos, ganham eleições e subvertem tradições e consensos democráticos estabelecidos.