Em momentos de crise, a velha fórmula de voltar aos clássicos a fim de aumentar a amplitude na visualização das problemáticas conjunturais sempre funciona. Voltando a um deles – 1984, de George Orwell – algumas reflexões parecem ser extremamente necessárias se quisermos entender o nosso “mundo confuso e confusamente percebido”, como prenunciou outro grande intérprete da contemporaneidade, o geógrafo baiano, Milton Santos.

Definida pela crítica como uma distopia (contra-utopia), a obra de Orwell se apresenta, em síntese, com uma representação desencantada das grandes utopias advindas com a modernidade. Embora o livro, como qualquer obra de arte, seja um signo aberto, nele não consta apenas uma representação de regimes totalitários à esquerda (Stalinismo) e à direita (Nazifascismo) percebidos de forma mais explícita e genérica. Mais que isso, 1984 alude à crise da modernidade e faz um alerta sobre os caminhos que a sociedade tomará se não houver uma problematização da sua realidade.

Durante o período que se estendeu das revoluções de fins do século XVIII – notadamente a Revolução Francesa, a Americana e a Industrial – até a Primeira Guerra, houve o incremento de uma crença enorme no progresso, como se este por si só fosse capaz de elevar a sociedade a terrenos até então inimagináveis.

O desenvolvimento tecnológico e as descobertas científicas da época, de fato, propiciavam tempos de grandes esperanças. No entanto, com o passar dos anos, os ideais iluministas presentes nas revoluções do Dezoito não só se tornaram figuras retóricas, como a fé no progresso, entre outras coisas, levou o mundo a um conflito de escala continental.

Ao tempo de grandes esperanças, sucederam-se tempos melancólicos e desesperados, aprofundados com a grande depressão da década de 1920 e a ascensão dos regimes fascistas na década de 1930. Se a Primeira Guerra não foi suficiente para instaurar uma crise mais profunda no ideal de modernidade, a Segunda Guerra o foi, deixando marcas indeléveis no mundo ocidental.

O sentimento lúgubre da época não escapou a Orwell, que produziu uma obra – 1984 – simultaneamente do seu tempo, mas também do nosso. Até porque, conforme as épocas avançam, fica cada vez mais claro o paradoxo da modernidade, em que seus pares antitéticos duelam: o progresso e a desesperança, que, em tese, deveria ser alheia àquele.

O paradoxo se estabelece a partir não somente dos grandes conflitos bélicos oriundos, em larga medida, pelo desejo de progresso econômico a que muitas nações (ou corporações?) se lançaram e se lançam, mas também pelas guerras caladas, a que assistimos cotidianamente em silêncio. Afinal, a pobreza, a miséria e o subdesenvolvimento que sustenta a riqueza e o desenvolvimento alheio merece menos repúdio do que uma Guerra, com “g” maiúsculo? Um sistema que enxerga as pessoas como números merece ainda ser chamado e pensado enquanto humano?

Questões, questões… às quais quase nunca pensamos. Ou fingimos pensar. Seja como for, essas mazelas, bem como outras, como a escalada de doenças psicossomáticas (segundo dados da OMS, a depressão será a doença mais incapacitante do mundo até 2025), fazem parte da sociedade tecnológica e moderna que ocupamos. O que é difícil compreender se não pensarmos que, em alguma medida ao menos, vivemos em regimes totalitários, ainda que uniformemente se apresentem como democráticos.

É exatamente nesse ponto, além de outros, que 1984 parece ser tão atual, uma vez que, ao comparar a atmosfera desencantada e automatizada do livro com a realidade desesperançada e desumanizada que atravessamos, encontramos um sentimento (Zeitgeist) comum entre a ficção e a realidade. Nesse sentido, a modernidade com as suas promessas continua a fracassar e a promover guerras explícitas e implícitas em nome de um progresso que jamais se apresenta como humano.

Para mudar a imagem do futuro construída por 1984 – representada, como diz um dos personagens do livro (O’Brien), por uma bota pisoteando um rosto humano eternamente – e, portanto, o nosso mundo, a saída apontada por Orwell é o desenvolvimento da consciência histórica, único elemento capaz de produzir esperança, resistência e transformação.

Se respondermos a partir dos paradoxos do mundo moderno capitalista, que a despeito do discurso oficial, continua a assassinar corpos e almas destinados às sobras do progresso, dificilmente apontaremos para caminhos contrários ao terror e à desesperança. Mas, como um truque de ficção, algumas coisas ainda resistem e, assim como o protagonista de 1984 (Winston Smith), procuram se revoltar, porque o gosto do que é humano sempre excede aos braços totalitários, treinados em sufocar qualquer forma de vida.