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Em uma palestra para o Café Filosófico, Leandro Karnal faz uma reflexão sobre a tirania diluída no dia a dia do indivíduo comum. Ele faz referência a Étienne de La Boétie (filósofo francês) para trazer a ideia de que as pessoas que são oprimidas ou reclamam de opressão são quem se tornam opressoras ou mantem a opressão.

Karnal também nos lembra que nenhum tirano trabalha sozinho, ele precisa de uma cadeira de pequenos tiranos para perpetuar esse poder, não é atoa que o funcionário que mais lambe a bota do patrão acaba sendo agressivo com aqueles que dependem dele.

Abaixo a adaptação de um trecho da palestra de Karnal onde ele discorre sobre o assunto:

O filósofo Étienne de La Boétie usa uma expressão que para nós causa estranheza: ele diz que o tirano transforma o cidadão em efeminado. No século XVI, esse adjetivo era usado para designar algo ou alguém sem iniciativa e sem virilidade. Prefiro, então, substituir tal adjetivo pelo termo “infantilizar” ou “alienar”, porque Étienne não era um misógino, mas a ideia do efeminado, para ele, é histórica.

Como os tiranos se perpetuam? Antigamente, em Roma, eles se perpetuavam através de espetáculos, jogos e diversão pública. Dizia Étienne que, em troca da tirania, os tiranos ofereciam pão e circo. Ainda segundo o filósofo, os romanos achavam o imperador Nero um horror, mas gostavam e sentiam saudades de suas festas, afirmando que essas eram ótimas. Ao fenômeno festa acrescentou-se, no Estado, o fenômeno religião, que dizia que Deus queria e apoiava o rei; Étienne, por outro lado, afirmava em sua obra que Deus não tinha culpa da tirania, ou seja, que não deveriam envolver Deus nela. A religião surgiu, nesse campo, para tornar suportável o insuportável.

O filósofo aponta para a força simbólica da tradição, que é reforçada por aparatos – sempre foi assim. Como exemplo, há a faixa presidencial que, desde Prudente de Morais, todo presidente do Brasil a recebe. Mas os tiranos não governam apenas com religião ou com hábitos: eles precisam de, pelo menos, cinco ou seis assessores (de um grupo que os apoie), pois, como diz Étienne, esses cinco ou seis assessores mandam em outros dez ou vinte e esses dez ou vinte mandam em cem. Disse Marcel Conche, especialista em Étienne: “O tirano tiraniza graças a uma cascata de tirania”. Então, os tiranizados, a fim de se vingarem, tiranizam os que estão abaixo nesta hierarquia; quanto mais uma pessoa é oprimida, segundo Conche, mais ela tiraniza. Com isso, os tiranos vão sendo multiplicados.

No clipe da música The Wall, da banda Pink Floyd, o professor que humilha os alunos, ao chegar a sua casa, é humilhado pela esposa. Nesse clipe célebre há uma referência a Étienne de La Boétie.

As pessoas que um dia reclamaram da opressão se tornam opressoras; quem humilha também foi humilhado, quem controla também é controlado e se vinga controlando ainda mais. E assim o tirano vai desde o topo desta cadeia alimentar até a base, sendo respeitado voluntariamente por pequenos tiranos que se reproduzem na sala de aula, no trânsito, nos condomínios e nas famílias.

Quando uma pessoa pode exercer o vasto poder que um síndico tem – esse poder impressionante que alimenta a história e exalta a arte –, saudando a plateia como se fosse o papa na Praça de São Pedro, Étienne é corroborado, pois lá está a decadência final de um poder, onde cada um pisa em quem for possível. Não à toa o mais subserviente dos gerentes de uma empresa, aquele que mais “lambe a bota” do patrão, é o mais agressivo com a faxineira – é uma maneira de ele descontar a destruição de seu ser diante do poder. Portanto, quanto mais uma pessoa é oprimida mais ela oprime.

Transcrição feita e adaptada pelo Provocações Filosóficas da palestra: O medo à liberdade: dos ditadores à autoajuda | Leandro Karnal – CPFL Cultura.

Assista o trecho:

Assista na integra:

Na pirâmide das hierarquias quem oprime também é oprimido, quem humilha é humilhado e assim se perpetua uma cascata de opressão, do mais poderoso ao mais subserviente, são todos pequenos tiranos.

Leandro Karnal (São Leopoldo, 1º de fevereiro de 1963) é um historiador brasileiro, atualmente professor da UNICAMP na área de História da América. Foi também curador de diversas exposições, como A Escrita da Memória, em São Paulo, tendo colaborado ainda na elaboração curatorial de museus, como o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.

Graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e doutor pela Universidade de São Paulo, Karnal tem publicações sobre o ensino de História, bem como sobre História da América e História das Religiões.